quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Opinião de Cegalla sobre a reforma ortográfica

Voz ativa
Aos 88 anos, Domingos Paschoal Cegalla, o pioneiro da gramática brasileira, quer mais ousadia na reforma ortográfica
SÃO PAULO - In medio virtus. Em outras palavras, nem muito ao mar nem muito à terra. Eis a cordilheira sobre a qual se instala Domingos Paschoal Cegalla, gramático que atravessou quase cinco gerações de estudantes brasileiros, quando avalia o caminho que traçou para chegar ao Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa: "Nem demasiada condescendência com os desvios da boa norma, nem caturrice vernaculista" .
Não consta, face a face, que o professor Cegalla seja um senhor caturra - a não ser que eu escrevesse tête-à-tête agorinha mesmo, como, enfim, acabo de fazer. Para esse catarinense de 88 anos, voz pausada, olhar etéreo e mãos doces, não devemos nos deixar contaminar por termos peregrinos. Por que hall, se temos vestíbulo? Por que trupe se temos elenco? Por que complô se grassa a conspiração? Aos estrangeirismos que se apegaram ao português feito nhacas, ele propõe um reboco na forma vernácula. Recorde, xorte e imbrólio, no seu ângulo de visão, seriam preferíveis a record, short e imbroglio.
Já diante da possibilidade de confusão que se avizinha com o novo acordo ortográfico, previsto para entrar em vigor nos países lusofalantes a partir de 2009, Cegalla reage com certo agastamento. "Essa reforma é muito tímida e superficial. " Queria mais punch, ops!, ousadia para atingir não somente os sinais diacríticos (entre eles o trema, o acento agudo de jibóia e o circunflexo de vôo) como também certas incoerências que se notam no sistema ortográfico brasileiro. Uma desumanidade, por exemplo, é escrever desumano sem h e co-herdeiro com o dito cujo. "Ninguém hesitaria em pronunciar corretamente co-herdeiro sem este h, que me parece inútil." Pode parecer perseguição, mas lá vai Cegalla propor a guilhotina nas palavras que começam exatamente com essa mísera letra. Hesitaria seria esitaria; hoje, oje. Assim, de supetão, parecem casos de anencefalia. "Grafa-se hoje porque vem do latim hodie." A bem da simplificação ortográfica, portanto, o h etimológico inicial perderia o emprego.
A bem de romper a estranheza com mudanças, o professor lembra o sistema ortográfico de 1943. Iniciativa da Academia Brasileira de Letras, causou rebuliço porque, entre outras medidas, trocou officio por ofício, psalmo por salmo, attento por atento, rhinoceronte por rinoceronte. "Por ter abolido o th, o ph e as consoantes geminadas inúteis, nossa ortografia, com a espanhola, é das mais avançadas no mundo", categoriza. Sobre sua atração pela língua em si, ele bota o indicador na testa para recobrar o que Eça disse ao amigo Eduardo Prado: "Os brasileiros falam português com açúcar".
Cegalla nasceu duplo "l" em Tijipió, com j e acento no ó, distrito de Tijucas, a cerca de 50 quilômetros de Florianópolis. Lidava com cana-de-açúcar na fazenda do pai, mas o apetite voraz pela leitura não teria vindo da sacarose, e sim de um dom inato. Até os 12 anos deu expansão às suas energias. A partir de então foi enviado a Curitiba para estudar no Colégio Santa Maria, dos irmãos maristas, tradicionalmente dedicados ao ensino. Ainda na capital formou-se em Letras Clássicas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, não sem antes passar pela hedionda tarefa de trancar a matrícula por quase dois anos para servir no Exército, quando esteve cotado para ser pracinha da FEB. Protocolista na ocasião, enviou um pedido de dispensa ao então ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e ganhou o aval para voltar aos estudos.
Passada a guerra, o Paraná ficou pequeno para suas ambições profissionais. Rasgou então a estrada até São Paulo, onde deu aulas de português no Colégio Marista do Carmo, perto da Av. Rangel Pestana, até 1952. Amante da beleza, seja na mulher, seja na natureza, virou e revirou um mapa do Rio até pontuar a zona sul. Mudou-se em 1953, decidido a ficar. No Colégio Rio de Janeiro, em Ipanema, ensinou latim e português a turmas do ginásio. No Santo Inácio, em Botafogo, foi mestre de português e também de literatura, com um diferencial: passou a usar a si mesmo nas aulas. Explica-se. Angustiado com o material didático disponível na época, limitado e sem ilustrações, recheado de textos arcaicos e enfadonhos, Cegalla organizou as anotações feitas durante anos em cadernos de brochura até chegar à Novíssima Gramática da Língua Portuguêsa, que levava circunflexo na época. Era já uma gramática normativa, publicada pela Companhia Editora Nacional e abonada por trechos de obras de autores modernos, como Drummond, Cecília Meireles e Luís Jardim. "As frases não podiam ser muito longas e tinham de oferecer um conteúdo ideológico, um colorido poético." Nananinanã, portanto, para "A mulher pôs a água no fogão e começou a mexer a comida". Prefere "Obelisco não é mourão em que se amarram cavalos" ou "Não se atravessam oceanos só para dançar valsas", cujas autorias aqui não revelamos para quiçá atiçar a curiosidade do leitor.
Confessa que o Novíssima da gramática foi idéia dele, tão-somente dele, inspirado nos Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa, do gramático Mário Barreto. O superlativo absoluto poderia se configurar um tiro no pé, não fosse Cegalla pioneiro na tarefa de promover uma arrumação tranqüilizadora e consistente nos fatos gramaticais. "Considero a obra dele de grande respeitabilidade dentro da época em que trabalhou com isso", afirma Maria Helena de Moura Neves, livre-docente da Unesp e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, autora entre outros de A Gramática Funcional (Martins Fontes) e usuária da gramática de Cegalla quando deu aulas no ensino fundamental e médio há mais de 20 anos.
O sucesso da obra foi tamanho que o professor repousou o giz na lousa após 35 anos de magistério para se dedicar exclusivamente aos pedidos da editora. Além da Novíssima, em sua 47ª edição, assina a Nova Minigramática, o Dicionário Escolar, dois livros de poesia (Canção de Eurídice e Um Brado no Deserto), o Dicionário de Dificuldades (Lexicon Editora) e traduções de Édipo Rei e Antígona diretamente do grego, essa última, premiada com o Jabuti, que Cegalla, aliás, não foi receber. "Estudei grego na faculdade e depois li a gramática grega sete vezes até assimilar a conjugação." No prelo estão os episódios, segundo ele, mais bonitos da Eneida, de Virgílio, dados à luz em português há seis meses por meio do latim. Também está a caminho a Novíssima Gramática já adaptada ao novo acordo ortográfico.
Pelos números da editora, Cegalla vendeu aproximadamente 16 mil exemplares da Novíssima no ano passado, enquanto seu dicionário com mais de 20 mil verbetes, incorporado pelo Programa Nacional do Livro Didático, porém não organizado por ele, chegou a 1,5 milhão de exemplares. Com os direitos autorais acumulados por décadas ele ergueu seu patrimônio, que abraça um imóvel em condomínio fechado no Leblon para uso próprio, da mulher e de um dos quatro filhos, mais apartamentos que aluga a turistas no Rio. Não obstante, ser gramático normativo não lhe rende atualmente verdes louros na academia, avessa a descritivismos tradicionais e defensores arraigados da língua. Seu isolamento também o afastou das rodas lingüísticas, que Cegalla, com toda a delicadeza, considera pouco funcionais. "A prática da língua se aprende na gramática."
No terceiro andar da casa do Leblon, ele respira imperativos, concordâncias verbais, vozes passivas, sufixos nominais e superlativos absolutos sintéticos eruditos que emanam de aproximadamente 5 mil seletos títulos, a saber, obras completas de Machado, Bandeira, Vinicius, Drummond, Alexandre Herculano e outros que pinça de acordo com a necessidade e o humor. Do último livro que leu, não se lembra. Era autor português novo, e são muitos os autores novos de qual língua quer que seja. As histórias, na verdade, lhe são secundárias. Escarafuncha a estrutura das frases e, por isso, considera-se moroso na leitura. Leva de uma a duas semanas para terminar um romance médio, também porque as pelejas de futebol roubam algumas de suas noites e tardes. Impossível saber se sempre andou com vagar ou se é a idade que dita seu ritmo. Mas é lépido no gatilho para perceber que alguém se constrange ao se sentar ante um gramático: "Sempre evitei corrigir as pessoas quando falam por outra cartilha". Logo diz para os convivas se acalmarem e conversarem naturalmente, para não terem receio, que não é nenhum bicho-papão. Mas ai de ti se disser cataclisma ou se pedir que coloque menas água no copo. "Aí eu não resisto...

Domingos Paschoal Cegalla: professor, gramático, poeta e tradutor brasileiro
Texto de Mônica Manir - O Estado de S.Paulo - Edição de 5-12-08

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